“Ele (o homem) é feito para saber, que o elogio a boas intenções, sem o mérito das boas ações, será de pouco aval para estimular, seja a aclamação do mundo, ou mesmo um elevado grau de autorreconhecimento. O homem que não realizou nenhuma ação de importância, mas cuja conversação e postura expressa os mais justos, os mais nobres, e os mais generosos sentimentos, não pode fazer jus a demandar qualquer recompensa muito elevada.“ — Adam Smith, numa crítica ao monasticismo1
Nas postagens anteriores descrevemos resumidamente de que forma surgiram, no Iluminismo europeu dos séculos XVI a XVIII, a concepção e a efetiva prática da chamada nova ciência experimental. Observamos que Francis Bacon (1.561 – 1.626) havia considerado que essa nova ciência deveria focar em conhecimentos práticos, em detrimento dos temas religiosos ou metafísicos. Ou seja, a Teologia Cristã e a Filosofia Natural deveriam evoluir para uma ciência que buscasse não somente compreender a natureza, mas também colocá-la a serviço da obtenção de benefícios práticos para a humanidade.
Mas observamos também que houve um período de transição, durante o qual a Teologia Cristã Tradicional ensinada nas universidades foi sendo gradualmente substituída por outra: a Teologia Natural, ou Religião Natural. Adotando a postura de Isaac Newton, de outros precursores da ciência ocidental e também de alguns filósofos gregos e helênicos, a Teologia Natural tinha a pretensão de demonstrar a existência de um Deus único, mas sem apelar a dogmas ou à Revelação. Ou seja, durante esse período de transição ainda não ocorreu propriamente uma separação entre ciência e religião. Somente no século XIX a investigação científica passaria a restringir seus objetos de estudo àqueles nitidamente passíveis de verificação empírica.
Foi exatamente nesse período de transição que viveram, tanto Isaac Newton (1.643 – 1.727), quanto Adam Smith (1.723 – 1.790). Newton decifrava leis mecânicas com a convicção de que elas eram janelas para uma ordem maior. Ele não via a física como um fim em si, mas como um meio de compreender a harmonia cósmica — uma harmonia que, para ele, tinha raízes metafísicas e espirituais. E quanto a Adam Smith? Quais eram as suas concepções sobre Teologia Cristã Tradicional, Teologia Natural e Ciência Experimental?
Adam Smith e a Origem da Filosofia e Religiões Monoteístas Reveladas
Conforme já havíamos relatado na sétima postagem desse blog, na opinião de Adam Smith Filosofia e Religião Monoteísta surgiram ambas como fruto da mesma motivação: a busca de conhecimento sobre o mundo e sobre si mesmo. Para ele, a percepção da Unidade e de uma arte superior que aparentemente teria sido empregada na formação original do mundo, ocorreu tanto no surgimento da Filosofia, quanto na divina Revelação que deu origem às religiões monoteístas.
Ocorre o nascimento da filosofia quando a crendice e o politeísmo foram substituídos por uma percepção de que o Universo é a Unidade na diversidade – e não uma infinidade de fenômenos desconexos. Esse mesmo conhecimento foi obtido em outras regiões do planeta aproximadamente na mesma época, por meio da divina Revelação. E assim seguiram, ao longo dos próximos séculos: a filosofia fazendo uso apenas da razão; e a religião cristã também fazendo uso da razão, mas se apoiando fundamentalmente numa exegese da Revelação (e, para isso, exigindo a fé e aceitação de dogmas).
Essa percepção comum da Unidade Cósmica e de importantes princípios éticos e antropológicos, permitiram, no mínimo, uma convivência pacífica entre essas duas fontes de conhecimento, durante séculos. No início do Cristianismo, vários filósofos gregos e helênicos, como Justino Mártir (c. 100–165 d.C.), Clemente de Alexandria (c. 150–215 d.C.) e Orígenes (c. 185–254 d.C.), foram tocados e atraídos pelo cristianismo, alguns chegando a se converterem. Nos séculos seguintes, Agostinho e Tomás de Aquino se empenharam em demonstrar a inexistências de divergências inconciliáveis importantes entre a filosofia grega – especialmente de personagens como Pitágoras, Platão, Aristóteles e Estoicos – com a religião cristã.
Mas séculos depois, quando foram fundadas as principais universidades na Europa, o ensino da filosofia nessas instituições viria a se tornar inteiramente subordinado à Teologia Cristã, católica ou reformista. A disciplina de “Teologia” nas universidades como Oxford e Cambridge, especialmente entre os séculos XIII e XVIII, era o coração do saber acadêmico europeu. Graduação em Teologia era o grau mais elevado. Além de moldar o pensamento religioso, a Teologia influenciava profundamente a filosofia, a política e até as ciências naturais.
Quando estudou na Universidade de Glasgow, Adam Smith teve o privilégio de ser aluno de filosofia moral da Francis Hutcheson, filósofo moral de formação religiosa mais liberal a quem Smith sempre dedicou muito respeito e admiração. Mas quando chegou em Oxford, a natureza da influência dominante da teologia sobre as demais disciplinas – particularmente sobre a Filosofia Moral, que mais lhe interessava – no ensino daquela universidade inglesa, lhe causou desconforto. Particularmente nos aspectos a que ele se referiu com as seguintes palavras (que já havíamos citado na sétima postagem que publicamos nesse blog):
“Em que consistia a felicidade e perfeição de um homem, considerado não somente como um indivíduo, mas como um membro de uma família, de um estado, e da grande sociedade da espécie humana, era o objeto que a filosofia moral antiga se propunha a investigar. Naquela filosofia os deveres da vida humana eram considerados subservientes à felicidade e perfeição da vida humana. Mas quando moral, mas também filosofia, passou a ser ensinada somente como subserviente à teologia, os deveres da vida humana passaram a ser tratados como principalmente subservientes à felicidade numa outra vida. Na filosofia antiga, a perfeição da virtude era representada como necessariamente útil, para a pessoa que a possuía, para a mais perfeita felicidade, nesta vida. Na filosofia moderna, ela foi frequentemente representada como, geralmente, ou quase sempre, inconsistente com qualquer grau de felicidade nesta vida; e o paraíso era para ser conquistado somente pelos sofrimentos e mortificações, pelas austeridades e degradações de um monge; não pela liberal, generosa e espirituosa conduta de um homem. Casuística, e uma moralidade ascética, constituíam, na maioria dos casos, a maior parte da filosofia moral das escolas. O mais importante de todos os diferentes ramos da filosofia (a filosofia moral), se tornou, dessa maneira, de longe o mais corrompido”.
Adam Smith, Teologia Cristã, Religião, Espiritualidade
Essa crítica abrange, principalmente, a concepção da Teologia Cristã ensinada em Oxford e na maioria das grandes universidades da Europa pelo menos até o século XVIII, segundo a qual, conforme o entendimento de A. Smith, a felicidade só pode ser alcançada numa outra vida. E nesta vida se deve cultivar o menosprezo pelos bens materiais, sendo louvável também a opção pelo ascetismo e monasticismo.
Parece-nos forçoso reconhecer que esse entendimento da teologia cristã daquela época deve ter sido um dos mais fortes sustentáculos da condição de pobreza e miséria em que viveu mais de 90% da humanidade, até alguns séculos depois da Idade Média. E como se não bastasse, o pensamento econômico (ainda não podemos chamá-lo de “Teoria Econômica”) reinante na Europa na época de A. Smith, chamado de “Mercantilismo”, também considerava a pobreza da grande maioria da população como algo normal e insuperável.
O reconhecimento de que a redução adicional da pobreza e a extinção da miséria é possível e deve ser, no mínimo, um dos principais objetivos do processo civilizatório, há uns três séculos se tornou algo próximo do raro consenso. A mudança de mentalidade nessa direção já vinha acontecendo lentamente, desde o término do feudalismo e o surgimento da Reforma Protestante. Mas é historicamente inegável que a enfática proposição de A. Smith, em meados do século XVIII, de que a pobreza das nações deveria e poderia ser superada, foi algo quase revolucionário. Ainda mais quando se considera que ele, em coerência com a sua afirmação, passou a dedicar dez anos da sua vida escrevendo um livro com o objetivo de demonstrar como isso poderia ser feito (por enquanto não estamos entrando aqui nas qualidades e defeitos da proposta que ele chamou de “economia da liberdade natural”. Mas temos que reconhecer as numerosas evidências de que a intenção dele era de fato, voltada principalmente para o interesse dos mais pobres. Essas evidências as mostraremos mais adiante).
A discordância de Isaac Newton e de vários outros precursores da ciência no ocidente com aspectos da teologia cristã católica ou reformista significava que eles tinham abandonado a religiosidade? A nosso ver, isso depende do que se entenda por “religião”. O fato de que A. Smith possa ter discordado de aspectos da teologia que era ensinada em Oxford significa que ele tinha abandonado a religiosidade? A resposta só pode ser a mesma: depende do que se entenda por “religião”. Se ser “religioso” significa aceitar todos os dogmas e exegeses da teologia de uma religião institucionalizada, e seu clericalismo, então todos esses precursores da ciência se afastaram da religião. Parece-nos, no entanto, que autêntica religiosidade e espiritualidade são algo bem mais complexo e merecedor de um respeito não menos profundo do que aquele devido à ciência experimental (embora seja também perfeitamente compreensível a necessidade de uma separação metodológica entre ciência e religião).
Isso nos leva ao tema da nossa próxima postagem: qual foi a concepção de A. Smith sobre a “Religião Natural”, ou “Teologia Natural”, que passaria a substituir a Teologia cristã Tradicional nas principais universidades da Europa, durante vários anos?
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REFERÊNCIAS
1. Adam Smith, A Teoria dos Sentimentos Morais, Glasgow Edition, II.iii.3.3



