“Filosofia, por representar os canais invisíveis que reúnem todos esses objetos desconexos, procura introduzir ordem no caos de dissonantes e discordantes aparências, visando apaziguar esse tumulto da imaginação… ” — Adam Smith¹
“[O interesse pelo conhecimento surge da necessidade de desembaraçar o curso da imaginação sempre que este é interrompido pelo sentimento de incompreensão, perplexidade]. Admiração, portanto (satisfação perante o saber), e não qualquer expectativa de vantagem de suas descobertas, é o primeiro princípio que leva a humanidade ao estudo da Filosofia, daquela ciência que pretende abrir as conexões ocultas que unem as várias aparências da natureza; e eles buscam esse estudo por si mesmo, como um prazer original ou bem em si mesmo, sem considerar sua tendência de obter os meios de muitos outros prazeres.” — Adam Smith2
Concluímos a postagem anterior informando que daríamos prosseguimento analisando de que forma Adam Smith (1.723 – 1.790) lidou com cada um de três dos novos fenômenos associados ao Iluminismo: 1. A separação entre a ciência moderna e a religião; 2. A separação entre estado e religião; 3. Uma nova relação entre ética e religião. Vamos agora retomar esse fio da meada.
Para o tema da separação entre ciência moderna e religião usamos a referência de Francis Bacon (1561 – 1626) e observamos que a sua principal contribuição como precursor da moderna ciência experimental foi uma crítica à forma como Aristóteles e todos os filósofos escolásticos posteriores a ele tratavam o conhecimento (apenas como algo contemplativo e especulativo, sem qualquer interesse por suas aplicações práticas em benefício da humanidade). As duas citações de Adam Smith que fizemos na abertura dessa postagem, demonstram que ele conhecia perfeitamente essa crítica de F. Bacon.
Adam Smith, o Amor à Sabedoria e a Origem da Filosofia
Esses dois comentários de A. Smith que citamos deixam claro: 1. Que a motivação da Filosofia – a ciência daquela época – era compreender a unidade, a ordem, (“descobrir as conexões ocultas”) que supostamente permeiam todas as manifestações e diversidade do cosmos; 2. Para os primeiros filósofos, essa busca do saber era suficiente em si mesma, não era “um meio para a obtenção de muitos outros prazeres”. Isso explica inteiramente a razão pela qual a palavra grega “philosophia” significava “amor à sabedoria”.
Mas a concretização da proposta de F. Bacon de que a razão e a ciência deveriam passar a ser usadas para produzir resultados práticos viria a obter de A. Smith uma significativa contribuição. Desde os primórdios da humanidade, até o início do século XIX, não menos que 90% de toda a população do planeta vivia na extrema pobreza. Num prazo de 200 anos, a partir do século XIX, se verificou um impressionante crescimento da renda e da riqueza, que reduziu a extrema pobreza no mundo a menos de 10% da população. E nos parece inegável a contribuição que a obra de A. Smith aportou para esse avanço. Existem, porém, qualificações importantes que devem ser feitas quanto à visão dele acerca do acúmulo de riquezas materiais. E esta visão se constitui num dos aparentes paradoxos da sua obra.
Conforme já ressaltamos anteriormente, pelo menos na motivação de A. Smith toda a sua obra se colocava a serviço da felicidade humana. E o seu conceito de “felicidade” era muito próximo da “Eudaimonia” dos grandes filósofos gregos, mas, especialmente, de Aristóteles. A visão de Aristóteles sobre a virtude descrita no livro “Ética a Nicômaco” pode ser entendida pelo que ele chamou de “Doctrine of the Mean,” (Doutrina do Meio Termo), segundo a qual a virtude sempre se situa entre extremos. Cada virtude é um equilíbrio entre dois vícios, sendo um de excesso, e outro de deficiência. No caso da riqueza, o extremo de deficiência (a extrema pobreza) é tão indesejável para a felicidade quanto o deslumbramento pelo excesso.
É por isso que parece existir um “paradoxo da riqueza” na obra de A. Smith: por um lado, ele passa dez anos da sua vida em quase completo recolhimento, na sua pequena cidade natal, dedicado a escrever um livro cujo objetivo seria demonstrar de que modo as nações podem superar a pobreza; por outro lado, em seu livro A Teoria dos Sentimentos Morais ele afirma que o deslumbramento pela riqueza costuma ser uma das principais fontes de deterioração moral, e não poupa críticas bastante ácidas a atitudes costumeiras dos mais ricos (e não merece atenção, aqui, o antigo argumento de que ele teria mudado de ideia entre a publicação desses dois livros).
Adam Smith, Pobreza e Riqueza
“Da corrupção dos nossos sentimentos morais ocasionada pela disposição para admirar os ricos e os grandes, e para desprezar e negligenciar pessoas de condição pobre”. Esse é Capítulo III, Secção I, Parte I, do livro no qual A. Smith faz denúncias sobre a usual mesquinhez e privilégios dos ricos, e as injustiças cometidas contra os pobres:3
“Dois diferentes caminhos se apresentam para nós, igualmente conduzindo ao alcance desse objeto tão desejado (conquistar o respeito e admiração dos demais); o primeiro, pelo estudo da sabedoria e a prática da virtude; o segundo, pela aquisição de riqueza e grandeza. Dois diferentes caráteres são apresentados para a nossa emulação; o de orgulhosa ambição e ostentosa avidez; o outro, de modéstia humilde e justiça igualitária. Dois diferentes modelos, duas diferentes fotos, nos são apresentados, de acordo com os quais podemos desenhar o nosso próprio caráter e comportamento; um mais berrante e brilhante em suas cores; o outro mais correto e mais esquisitamente belo em seu desenho; um, forçando à observação de cada olho curioso; o outro, atraindo a atenção de poucos, mas dos mais estudiosos e cuidadosos observadores. Eles são principalmente os sábios e virtuosos, um seleto, embora, eu temo, poucos, que são os reais e firmes admiradores da sabedoria e da virtude. A grande multidão da humanidade são os admiradores e adoradores … da riqueza e da grandeza.”4
Lembrando a referência anterior a Aristóteles e a sua “Doutrina do Meio Termo”, nas observações acima, depois de condenar o deslumbramento pelo acúmulo de riquezas, agora, na afirmação a seguir, A. Smith ressalta a inconveniência e injustiça da condição de pobreza extrema:
“Deve-se considerar esta (possível) melhoria da situação das camadas de mais baixa renda como uma vantagem ou como um inconveniente para a sociedade? A resposta é tão óbvia, que salta à vista. Os criados, trabalhadores e operários dos diversos tipos representam a maior parte de toda grande sociedade política. Ora, o que faz melhorar a situação da maioria nunca pode ser considerado como um inconveniente para o todo. Nenhuma sociedade pode ser florescente e feliz, se a grande maioria de seus membros forem pobres e miseráveis. Além disso, manda a justiça que aqueles que alimentam, vestem e dão alojamento ao corpo inteiro da nação, tenham uma participação na produção de seu próprio trabalho que lhes permitam ter mais do que alimentação, roupa e moradia apenas sofríveis.”5
Observe-se que ele usa aqui a palavra “florescente”, que é exatamente uma expressão alternativa usada por Aristóteles para se referir à Eudaimonia (“florescimento” – seu conceito de felicidade).
Prosseguiremos com esse tema da relação de A. Smith com o Iluminismo nas próximas postagens.
Periodicamente, poderemos realizar reuniões online dedicadas exclusivamente a esclarecer dúvidas e compartilhar ideias sobre o conteúdo até então já disponibilizado neste blog.
Para mais informações entre em contato com a Organizadora do Autor:
Jacqueline Lima
O ESPAÇO DE CRIAÇÃO
E-mail: oespacodecriacao@gmail.com
REFERÊNCIAS
1. Adam Smith, Ensaios sobre Temas Filosóficos, II.12. Pgs., 45-6.2. Adam Smith, Ensaios sobre Temas Filosóficos, III.3., Pg. 51.
3. Adam Smith, A Teoria dos Sentimentos Morais, I.iii, Pg. 61.
4. Adam Smith, A Teoria dos Sentimentos Morais, I.iii.3.2; Pg. 62.
5. Adam Smith, A Riqueza das Nações, I.VIII.36, Pg. 96.



