Adam Smith, Renascimento e Iluminismo (Oitava Parte)

“… como e por que meios acontece que a mente prefere um teor de conduta a outro, considera um certo e outro errado; considera um como merecedor de aprovação, honra e recompensa, e o outro, de culpa, censura e punição? Adam Smith1

“… embora a razão seja, sem dúvida, a fonte das regras gerais de moralidade e de todos os julgamentos morais que formamos por meio deles, é totalmente absurdo e ininteligível supor que as primeiras percepções do certo e do errado podem ser derivadas da razão, mesmo naqueles casos particulares sobre os quais as regras gerais são formadas. Essas primeiras percepções, bem como todos os outros experimentos sobre os quais quaisquer regras gerais são fundadas, não podem ser objeto da razão, mas de sentido e sentimento. Adam Smith2

Vimos que o ensino nas universidades da Inglaterra e da Escócia, desde as suas fundações, teve uma influência marcadamente dominante das teologias cristãs anglicana (na Inglaterrra) e calvinista (na Escócia), em todos os seus cursos e disciplinas. E que um dos movimentos característicos do Iluminismo naquela região foi pela adoção da chamada Teologia Natural, ou Religião Natural, que pretendia demonstrar a existência e atributos de Deus com base na razão e na observação da natureza, sem recorrer à revelação divina.

Vimos também que nos primeiros anos de estudo de A. Smith na Universidade de Oxford a teologia dominante no ensino ainda era a anglicana, e porque foi motivo de insatisfação para ele a dominância dessa teologia sobre o ensino da Filosofia Moral – seu principal objeto de interesse. Quando ele retornou para a Escócia e pouco tempo depois se tornou professor de Filosofia Moral na Universidade de Glasgow, a teologia que fundamentava o ensino de todas as disciplinas naquela universidade já era a Teologia Natural. E o currículo de Filosofia Moral se desmembrava nas disciplinas de Teologia Natural (ou Religião Natural), Ética e Jurisprudência. Ou seja, para se tornar professor de Filosofia Moral em Glasgow ele precisou se tornar professor, também, de Teologia Natural.

Portanto, considerando-se que A. Smith foi professor de Filosofia Moral em Glasgow (que incluia a Religião Natural) durante vários anos, é compreensível a conclusão de boa parte dos estudiosos da sua obra de que ele esteve inteiramente de acordo com o propósito da Religião Natural (incluindo a tese de que é possível demonstrar a existência de Deus exclusivamente por meios racionais e empíricos). Mas essa conclusão não pode ser confirmada de maneira inequívoca por meio da leitura da sua obra, uma vez que pouco antes de sua morte ele deu ordem para que fossem queimadas notas de aulas e tudo o que ele havia escrito sobre o tema da Teologia Natural. E sobre esse tema absolutamente nada foi recuperado.

Evidências Indiretas

Consideremos, porém, as duas citações literais de A. Smith que reproduzimos na abertura dessa postagem. A primeira citação é uma pergunta: qual a fonte primária de onde se originam as nossas concepções sobre vício e virtude, sobre certo e errado? Na segunda citação ele responde: a origem não é a razão, o intelecto, a racionalidade, mas sim, sentimentos.

Isso nos leva necessariamente a uma dúvida: se a razão não é o meio por intermédio do qual se formam os nossos valores morais é razoável considerar que ela possa ser o meio por intermédio do qual adquirimos a percepção sobre a existência de Deus? Parece-nos que a resposta é não (será por meio da razão que os grandes místicos da humanidade adquirem uma convicção inabalável sobre Deus?). Parece-nos, também, como já dissemos em postagens anteriores, que uma certa concepção íntima, pessoal, sobre um Deus único e providencial, esteve com A. Smith até o final da sua vida. Mas que ele nunca pretendeu usar argumentos racionais – ou dar suporte a argumentos racionais de terceiros – visando descrevê-Lo ou provar a Sua existência.

A seguinte observação do próprio A. Smith deixa claro que ele foi favorável à Religião Natural:

“… aquela pura e racional religião, livre de cada mistura de absurdo, impostura ou fanatismo, tal como os homens sábios de todas as épocas do mundo desejaram ver estabelecida; mas, assim como a lei positiva, talvez nunca tenha sido, e provavelmente nunca se estabelecerá em nenhum país. Porque, no que diz respeito à religião, a lei positiva sempre foi, e provavelmente sempre será, mais ou menos influenciada pela superstição e entusiasmo popular.” – Adam Smith3

Mas esse apoio não resultava da opinião de que fosse possível demonstrar racionalmente a existência de Deus.

Como se Formam os Valores Morais, para Adam Smith

O principal objetivo de A. Smith no seu primeiro livro publicado em vida – A Teoria dos Sentimentos Morais – foi aprimorar a tese dos demais “filósofos sentimentalistas” da sua época (principalmente Francis Hutcheson e David Hume) de que o meio de formação dos valores morais não é a razão, mas sim “sentimentos”. Vamos descrever, por enquanto da forma mais simplificada possível, como ele entende que ocorre esse processo.

Smith considerou que faz parte da natureza humana a ncessidade do convívio com outras pessoas e de se sentir objeto de reconhecimento e admiração. Todas as pessoas teriam também a capacidade de exercitar a empatia. Ou seja, se colocar no lugar das outras pessoas e sentir o que elas sentem, por meio da empatia e da imaginação. Esse convívio social é o que resultaria na formação dos valores morais de cada indivíduo – seja em relação ao seu próprio comportamento, seja em relação ao comportamento de outrem. Mas, dessa forma, necessariamente esses valores morais refletem os costumes, os condicionamentos, as crenças, os valores, que prevalecem na sociedade, em cada época e lugar.

Contudo, segundo A. Smith, estaria também potencialmente ao alcance de todo ser humano a capacidade de desenvolver um estado de consciência por meio da qual se adquire o “sentimento” (no sentido de percepção direta, não de simples emoções) de valores morais autônomos. A capacidade de “acessar” esse “Impartial Spectator” (Observador Imparcial), exigiria o que o seu ex-professor Francis Hutcheson havia chamado de “consciência cultivada”.

Ou seja, é como se existissem duas pessoas em cada indivíduo: uma, que ele chamou de “man without” (“homem exterior”); e outra que ele chamou de “man within” (“homem interior”).

O “homem exterior” age sempre movido pelo interesse de conquistar o respeito, admiração e amor das outras pessoas – seja de forma merecida, ou imerecida (um político demagogo e populista, por esemplo, se satisfaz em conquistar a admiração por meio da mentira e enganação). Ele exercita valores que são do agrado e aprovação dos demais. Ele age movido pela busca de uma felicidade exclusivamente mundana e utilitarista.

O “homem interior” também quer ser amado – mas apenas de forma verdadeiramente merecida. O Observador Imparcial só se interessa pelo reconhecimento merecido. E a única forma de se tornar objeto de uma gratitidão ou reconhecimento merecido é por meio do serviço motivado pela satisfação em servir.

Segundo A. Smith, portanto, é como se existissem dois níveis hierárquicos de valores morais de cada indivíduo. No primeiro, que define o “homem exterior”, eles apenas refletem o sentimento acerca dos costumes, condicionamentos e valores morais típicos da sociedade, com os quais cada indivíduo almeja estar de acordo e ter aprovação. Mas, num segundo nível hierárquico, um estado de consciência mais evoluido como que permite o acesso aos sentimentos de um Observador Imparcial, de um “homem interior”, de onde se origina a percepçao de valores morais completamente autônomos. Não poderia existir conquista maior para cada ser humano, nesta vida, do que alcançar esse segundo estágio de consciência.

Daremos continuidade a esse tema na próxima postagem.

Periodicamente, poderemos realizar reuniões online dedicadas exclusivamente a esclarecer dúvidas e compartilhar ideias sobre o conteúdo até então já disponibilizado neste blog.

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Jacqueline Lima
O ESPAÇO DE CRIAÇÃO
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REFERÊNCIAS

1. Adam Smith, A Teoria dos Sentimentos Morais, Glasgow Edition, VII.i.2, pg. 265.
2. Adam Smith, A Teoria dos Sentimentos Morais, Glasgow Edition, VII.iii.2.7., pg. 320.
3. Adam Smith, A Riqueza das Nações, Glasgow Edition, V.i.g.8, pg. 793.

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