Adam Smith, Renascimento e Iluminismo (Nona Parte)

“… provavelmente poderiam, com o tempo, reduzir a doutrina da maior parte deles àquela pura e racional religião, livre de cada mistura de absurdo, impostura ou fanatismo, tal como os homens sábios de todas as épocas do mundo desejaram ver estabelecida; mas, assim como a lei positiva, talvez nunca tenha sido, e provavelmente nunca se estabelecerá em nenhum país. Porque, no que diz respeito à religião, a lei positiva sempre foi, e provavelmente sempre será, mais ou menos influenciada pela superstição e entusiasmo popular . Adam Smith1

Vimos em postagens anteriores que, mesmo depois de décadas de reinterpretação da obra de A. Smith – especialmente depois da publicação da Glasgow Edition – até hoje persistem numerosas controvérsias acerca dos significados de diferentes ideias e proposições contidas nessa obra. As concepções dele acerca de religiões e de Deus – e se tiveram algum papel relevante em sua obra – se mantêm como um dos principais objetos dessas controvérsias. As evidências que apresentamos e comentamos até agora, nas postagens anteriores sobre esse tema, podem ser resumidas como segue:

  1. Adam Smith discordou enfaticamente do tipo de influência que as religiões cristãs exerceram até a sua época, no século XVIII, no ensino de Filosofia Natural e Filosofia Moral nas universidades da Europa (particularmente, na Universidade de Oxford, na Inglaterra, onde ele estudou durante quase seis anos);
  2. Ele também fez várias críticas ao clericalismo e influências mundanas das religiões, especialmente com relação a temas como pobreza e riqueza materiais, monasticismo e interferência junto ao estado e governos.

Mas esse tipo de discordância, ou mesmo repúdio, em relação a aspectos mundanos das religiões institucionalizadas não permitem, por si só, qualquer conclusão acerca da concepção pessoal dele sobre Deus. Por exemplo, se ele era teísta, deísta, monista, panteísta, panenteísta, agnóstico, ateu etc.- e a eventual influência de qualquer dessas concepções sobre a sua obra ética e econômica. E ele nunca se manifestou direta e claramente sobre isso.

É compreensível, então, que se coloque a seguinte pergunta: a validade de algumas das ideias e proposições da sua obra são dependentes da aceitação da sua concepção e crença pessoal sobre Deus? Se a resposta for positiva, então se poderia argumentar que, de acordo com os critérios de definição de ciência moderna (critérios epistemológicos) a sua obra não teria caráter científico. E pessoas que se consideram ateus ou mesmo agnósticos não teriam interesse por ela.

Uma boa forma de responder a essa importante indagação é por meio do exame das suas ideias acerca do Impartial Spectator (Observador Imparcial), que tem importância crucial na sua Filosofia Moral, e sobre o qual fizemos uma breve introdução na nossa postagem anterior. Vamos explorá-lo mais um pouco agora, destacando a sua relação com a concepção de A. Smith sobre Deus. Dada a complexidade do tema, e o risco de interpretações pessoais e subjetivas da intenção do autor (que tem sido, a nosso ver, uma das causas de tantas controvérsias), usaremos particularmente aqui extensas citações literais do livro A Teoria dos Sentimentos Morais, antes de expressarmos o nosso entendimento.

Sobre o que quer que suponhamos que nossas faculdades morais são fundadas, seja sobre uma certa modificação da razão, sobre um instinto original, chamado senso moral, ou sobre algum outro princípio de nossa natureza, não se pode duvidar que elas nos foram dadas para a direção de nossa conduta nesta vida. – Adam Smith 2

Mas, agindo de acordo com os ditames de nossas faculdades morais, buscamos necessariamente os meios mais eficazes para promover a felicidade da humanidade e, portanto – pode-se dizer, em certo sentido – cooperar com a Divindade e avançar, até onde estiver nosso poder, o plano da Providência. Agindo de outra forma, ao contrário, parecemos obstruir, em alguma medida, o esquema que o Autor da natureza estabeleceu para a felicidade e perfeição do mundo, e para nos declararmos, se assim posso dizer, em certa medida, os inimigos de Deus. – Adam Smith 3

Uma vez que estes, portanto, foram claramente destinados a serem os princípios governantes da natureza humana, as regras que eles prescrevem devem ser consideradas como os mandamentos e leis da Divindade, promulgados por aqueles vices regentes que ele estabeleceu dentro de nós. – Adam Smith 4

… embora o homem tenha sido, dessa maneira, considerado o juiz imediato da humanidade, ele foi situado assim apenas em primeira instância. Existe um recurso de sua sentença a um tribunal muito superior, ao tribunal de sua própria consciência, a do suposto espectador imparcial e bem-informado, do homem dentro do peito, o grande juiz e árbitro de sua conduta. As jurisdições desses dois tribunais são fundadas em princípios que, embora em alguns aspectos semelhantes, são, no entanto, na realidade, diferentes. A jurisdição do homem exterior é fundada inteiramente no desejo de louvor e na aversão a repúdio. A jurisdição do homem interior é totalmente fundamentada no desejo de louvor MERECIDO e na aversão a repúdio MERECIDO. – Adam Smith 5

O suposto espectador imparcial de nossa conduta parece dar sua opinião a nosso favor com medo e hesitação. Quando todos os reais espectadores, quando todos aqueles com cujos olhos e de cuja posição … são unânimes e violentamente contra nós. Em tais casos, esse semideus dentro do peito aparece, como os semideuses dos poetas, embora em parte de extração imortal, mas em parte também de extração mortal. Quando seus julgamentos são firmemente dirigidos pelo senso de louvor e merecimento, ele parece agir de acordo com sua divina extração. Mas quando ele se deixa surpreender e confundir pelos julgamentos do homem ignorante e fraco, ele descobre sua conexão com a mortalidade, e parece agir adequadamente, mais para a humana, do que para a divina parte, de sua origem. – Adam Smith 6

Em tais casos, o único consolo eficaz do homem humilhado e aflito está em um apelo a um tribunal ainda mais alto, ao do Juiz que tudo vê do mundo, cujos olhos nunca podem ser enganados, e cujos julgamentos nunca podem ser pervertidos … Que há um mundo por vir, onde a justiça exata será feita e cada homem será colocado junto com aqueles que, nas qualidades morais e intelectuais, são realmente iguais a ele … É uma doutrina, em todos os aspectos tão venerável, tão confortável para a fraqueza, tão lisonjeiro para a grandeza, da natureza humana, que o homem virtuoso que tem a infelicidade de duvidar dela, não pode deixar de desejar, com mais sinceridade e ansiedade, nela passar a acreditar. – Adam Smith 7

As citações acima são apenas um pequeno número de exemplos das passagens do livro A Teoria dos Sentimentos Morais nas quais A. Smith se refere, de diferentes maneiras, a Deus, no contexto da sua Filosofia Moral. A leitura dessas passagens permite uma razoável compreensão da sua concepção sobre Deus.

Na próxima postagem examinaremos a concepção de Adam Smith sobre ciência. Depois disso estaremos em condições de formular uma resposta para a questão que colocamos acima: a validade de algumas das ideias e proposições da obra de A. Smith são dependentes da aceitação da sua concepção e crença pessoal sobre Deus? Estaremos em condições também de responder qual a concepção de a. Smith sobre a proposta de Francis Bacon de separar ciência e religião.

Periodicamente, poderemos realizar reuniões online dedicadas exclusivamente a esclarecer dúvidas e compartilhar ideias sobre o conteúdo até então já disponibilizado neste blog.

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Jacqueline Lima
O ESPAÇO DE CRIAÇÃO
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REFERÊNCIAS

1. Adam Smith, “A Riqueza das Nações”, V.i.g.8., pg. 793
2. Adam Smith, “A Teoria dos Sentimentos Morais”, III.5.5., pgs. 164-5;
3. Adam Smith, “A Teoria dos Sentimentos Morais”, III.5.7., pg.166;
4. Adam Smith, “A Teoria dos Sentimentos Morais”, III.5.6., pgs. 165-6;
5. Adam Smith, “A Teoria dos Sentimentos Morais”, III.2.32, pgs. 130-1;
6. Adam Smith, “A Teoria dos Sentimentos Morais”, III.2.32., pgs. 130-1;
7. Adam Smith, “A Teoria dos Sentimentos Morais”, III.2.33., pgs 131-2.

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