Adam Smith, Renascimento e Iluminismo (Décima Primeira Parte)

“Sobre em que suponhamos que nossas faculdades morais são fundadas, seja sobre uma certa modificação da razão, sobre um instinto original chamado senso moral, ou sobre algum outro princípio de nossa natureza, não se pode duvidar que elas nos foram dadas para a direção de nossa conduta nesta vida… Uma vez que estas, portanto, foram claramente destinadas a serem os princípios governantes da natureza humana, as regras que elas prescrevem devem ser consideradas como os mandamentos e leis da Divindade, promulgados por aqueles vice regentes que ele estabeleceu dentro de nós. Adam Smith1

“Sempre sei realmente. Só o que eu quis, todo esse tempo, o que eu pelejei para achar, era uma só coisa – a inteira – cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. Que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver – e essa pauta cada um tem – mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é. E que: para cada dia, e cada hora, só uma ação possível da gente é que consegue ser a certa. Riobaldo, Personagem da Obra de Graciliano Ramos 2

As hipóteses e proposições da teoria sobre a formação dos valores morais contidas no livro A Teoria dos Sentimentos Morais se baseiam em evidências empíricas, que consideram as relações sociais, a empatia e a imaginação. Nesse nível, os valores morais de cada pessoa são influenciados pelos costumes e julgamentos vigentes na sociedade.

O estado da consciência que se encontra nesse nível foi chamado por Adam Smith de “homem exterior”. Segundo Smith, nessa condição ele tem grande interesse em receber a aprovação e reconhecimento das demais pessoas da sociedade. Nesse sentido, os seus julgamentos morais não são inteiramente imparciais. Essa é a argumentação de Adam Smith sobre a formação dos valores morais que supostamente se apoia em evidências empíricas e podem ser comprovadas, questionadas e negadas.

Mas, segundo ele, existe um nível mais profundo da consciência,que ele chamou de “Observador Imparcial”, ou “homem interior”, que não é influenciado pelas opiniões de terceiros, já que é um “semideus dentro do peito” de procedência “parcialmente imortal, e parcialmente mortal.”3 Somente nesse estágio de consciência os julgamentos morais, sobre si mesmo e sobre outrem, são imparciais.

Com esse mesmo sentido, ele afirma que as regras prescritas pelas nossas faculdades morais “devem ser consideradas como os mandamentos e leis da Divindade, promulgados por aqueles vices regentes que ele estabeleceu dentro de nós”.

Ele faz essa proposição mesmo sabendo que ela não pode ser provada ou negada empiricamente. O que importa é que essa não é uma hipótese ou proposição indispensável para a sua teoria de formação da consciência moral. Além disso, ética é um ramo da filosofia. E com o surgimento da ciência moderna, ciência e filosofia deixam de ter o mesmo significado.

Adam Smith (1723-1790), David Hume (1711-1776) e Immanuel Kant (1724-1804)

David Hume e Immanuel Kant são considerados dois dos maiores filósofos morais da história. Ambos foram contemporâneos de Adam Smith. Hume era agnóstico e usualmente se considera que ele foi ateu. Mas para Smith, que o admirava também pela sua conduta ética irretocável, isso não impediu que ele tenha se tornado o seu maior e mais íntimo amigo.

No prefácio da sua obra “Prolegômenos à Metafísica” Immanuel Kant declarou ter recebido importante influência de Hume: “Confesso que foi a lembrança de David Hume que, há muitos anos, interrompeu o meu sono dogmático e deu às minhas investigações no campo da filosofia especulativa uma direção completamente diferente”.

Segundo Samuel Fleischacker, Ph.D. e membro do Departamento de Filosofia da Universidade de Illinois, Chicago, Immanuel Kant considerava Adam Smith um “querido” entre os filósofos morais escoceses, e há traços importantes da influência dele nos escritos morais e políticos de Kant4

Mas o prestígio de Hume e Kant como filósofos morais se manteve, no mínimo, intacto, até os dias atuais, enquanto Adam Smith, durante décadas depois da publicação do seu livro sobre Economia, foi quase esquecido como filósofo moral. Isso foi em grande parte uma decorrência da fama e prestígio que viria a conquistar com o seu livro A Riqueza das Nações, se tornando desde então o economista fundador da moderna Economia Política; e da falsa ideia que teve considerável acolhimento durante boa parte do século XIX de que haveria contradições entre teses fundamentais dos livros A Riqueza das Nações e A Teoria dos Sentimentos Morais (o pseudoproblema que ficou conhecido como “Adam Smith Problem”).

Recuperação Recente do Prestígio de Adam Smith como Filósofo Moral

Durante a releitura da obra de Adam Smith ao longo das últimas décadas seu prestígio como filósofo moral tem estado em firme ascensão. Apresentamos a seguir algumas referências desse fenômeno.

Gilbert Harman (1.938 – 2.021), ex-Professor de Filosofia da Universidade de Princeton, afirmou sobre o livro A Teoria dos Sentimentos Morais: “Smith elabora essa teoria com uma massa de detalhes que não posso tentar resumir. Acredito que o livro em que ele trabalha isso, seu Teoria dos Sentimentos Morais, é uma das grandes obras da filosofia… Há uma ironia interessante na maneira como o uso de Hume da “simpatia” leva Smith à sua própria teoria, muito diferente, uma teoria que, na minha opinião, é muito melhor do que a de Hume na explicação da fenomenologia moral… é desconcertante que a ética de Adam Smith seja relativamente pouco lida, em comparação com a de Hume, quando há tanto valor em Smith. Por que a ética de Smith deveria ser tão negligenciada?5

Para o filósofo D. D. Raphael (1916 – 2015), um dos editores do livro A Teoria dos Sentimentos Morais, da Glasgow Edition, “A teoria de Adam Smith pode ser comparada com a mais conhecida das explicações psicológicas sobre a consciência, qual seja o superego de Freud. Ela é semelhante à de Freud por considerar a consciência como um segundo self construído na mente como um reflexo das atitudes de outras pessoas. A teoria de Adam Smith é até mais abrangente, porque Freud considerou a formação do superego eminentemente como influência dos pais, enquanto Adam Smith considerou uma influência muito mais ampla.” 6

Jonathan Haidt, um dos mais conceituados psicólogos sociais contemporâneos, afirma: “Eu sou um ´Humeano´. Acredito que o raciocínio moral é o servo das emoções morais e que os julgamentos morais surgem de rápidos lampejos de intuição.”7 Haidt costuma mencionar também Adam Smith como exemplo de filósofo moral sentimentalista (como o foram, também, Hume e Hutcheson) precursor da sua própria abordagem intuicionista e da empatia como base da moralidade.

Marco Iacoboni, M.D., Ph.D., professor na Universidade da Califórnia, em Los Angeles (UCLA), é um destacado neurocientista contemporâneo que relaciona a obra de Adam Smith com os “neurônios-espelho”. Pois, no seu entendimento, ela exemplificaria a “empatia incorporada” — uma reação automática e corporal aos sentimentos alheios. Iacoboni menciona Adam Smith como alguém que antecipou, de forma notável, os fundamentos da empatia que a neurociência moderna começa a explicar biologicamente. “Adam Smith já havia observado que, ao ver alguém sofrer, sentimos uma dor que não é nossa, mas que parece ser. Essa descrição é surpreendentemente compatível com o que hoje sabemos sobre os neurônios-espelho.”8 A seguinte passagem do livro A Teoria dos Sentimentos Morais costuma ser citada, para ilustrar isso: “Quando vemos um raio de trovão prestes a atingir a perna ou braço de outra pessoa, naturalmente encolhemos e recuamos nossa perna ou nosso braço.”9

Como se pode ver, a proposição de Adam Smith de que o Observador Imparcial é de procedência parcialmente imortal, e que os princípios das nossas faculdades morais são leis de Deus, não tem impedido que a sua teoria sobre a consciência moral venha sendo bem acolhida em diferentes áreas do conhecimento contemporâneo. A tese contemporânea que defende a “non-local consciousness” (que a consciência não é algo localizado exclusivamente no cérebro)10 provavelmente também não estará sujeita a demonstração empírica ou negação inquestionáveis. O fato é que até hoje a ciência não conseguiu demonstrar o que é, precisamente, a consciência humana.

Na próxima postagem comentaremos a forma diferente como Adam Smith lidou com a proposição iluminista de separação entre ciência e religião, no seu livro A Riqueza das Nações.

Periodicamente, poderemos realizar reuniões online dedicadas exclusivamente a esclarecer dúvidas e compartilhar ideias sobre o conteúdo até então já disponibilizado neste blog.

Para mais informações entre em contato com a Organizadora do Autor: 

Jacqueline Lima
O ESPAÇO DE CRIAÇÃO
E-mail: oespacodecriacao@gmail.com

REFERÊNCIAS

1. Adam Smith, A Teoria dos Sentimentos Morais, pgs. 164-6;
2. Guimarães Rosa, “Grande Sertão: Veredas”, Editora José Olympio, 5ª Edição, pg. 366;
3. Adam Smith, A Teoria dos Sentimentos Morais, III.2.32., pg 131;
4. Samuel Fleischacker, “Philosophy and Moral Practice: Kant and Adam Smith,”Kant-Studien 1991; e “Values Behind the Market: Kant’s Response to the Wealth ofNations,” History of Political Thought, 1996;
5. Gilbert Harman, The Lindley Lecture – The University of Kansas – “Moral Agent and Impartial Spectator” – (1986);
6. D. D. Raphael, The Impartial Spectator – Adam Smith´s Moral Philosophy, Oxford Unversity Press, (2007);
7. Jonathan Haidt, “The Righteous Mind – Why Good People Are Divided by Politics and Religion. First Vintage Books Edition, 2013, CapítuloI;
8. Marco Iacabroni, Mirroring People: The Science of Empathy and How We Connect with Others (2008);
9. Adam Smith, A Teoria dos Sentimentos Morais, Glasgow Edition, I.i.1.3;
10. “The Evidence for Non-Local Consciousness: Researchers Prove Consciousness Can Exist Outside of the Body & After Death”by Stanislav Grof, M.D., Ph.D.

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