“Todos os seres humanos, por natureza, almejam o saber. Uma indicação disso é o prazer que temos em nossos sentidos; pois, mesmo à parte de sua utilidade, o saber é amado por si mesmo .“ — Aristóteles1
Nas últimas postagens temos examinado a concepção de A. Smith sobre Deus e religião e a influência dessa concepção sobre a sua obra. Vimos até agora que ele foi bastante crítico sobre aspectos das religiões institucionalizadas e do clericalismo. Nesse sentido, “… ele faz parte dos pensadores iluministas que almejaram a chegada de uma religião moral universal, que preservasse as partes moralmente valorosas do judaísmo, cristianismo e islamismo, e descartasse seus rituais e credos sectários.”2
Por outro lado, inúmeras passagens da sua obra filosófica, especialmente no livro A Teoria dos Sentimentos Morais, deixam claro que ele tinha e manteve até a morte uma concepção pessoal sobre um Deus único e providencial. Ou seja, que ele sempre foi um monoteísta.
Sobre esse tema tão complexo e subjetivo, mas de grande importância para que se possa compreender a unidade da obra de A. Smith, iremos avançar comentando dois aspectos, na presente postagem: 1. Qual era a concepção dele sobre ciência; 2. Alguma ou algumas das proposições importantes da sua obra ficam na dependência da crença na existência de Deus, invalidando assim o seu caráter científico, sob os critérios da epistemologia contemporânea?
A Concepção de A. Smith sobre Ciência.
Parece-me que haveria escassas objeções respeitáveis à afirmação de que Isaac Newton pode ser considerado um dos mais importantes cientistas da história, mesmo sob os critérios contemporâneos da Filosofia da Ciência, que ainda não vigoravam na sua época. E como já vimos, A. Smith manifestou a sua admiração pelo método indutivo de investigação científica de Newton, considerando-o superior ao de René Descartes. E argumentou que ele poderia ser adotado também para suas próprias investigações sobre a Filosofia Moral. Ocorre-nos, portanto, que uma interessante maneira de começar a examinar as questões acima seria considerá-las, primeiro, em relação a Newton.
Na época de Newton ainda não se encontrava em vigor a proposta de Francis Bacon da separação entre ciência e religião. Newton via as leis naturais – a gravidade, por exemplo – como manifestações da vontade divina. Ou seja, as suas explicações científicas para o funcionamento de fenômenos da natureza resultavam num sistema que poderia ser considerado mecânico. Mas, para ele, uma mecânica que teve um criador inteligente, e é parte das conexões ocultas de uma unidade cósmica, da qual nada pode estar separado. E cuja compreensão seria o principal objetivo da Filosofia Natural (como era chamada a ciência na sua época). Ele afirmou que a busca da demonstração do “inteligent design” (desenho inteligente do mundo) se constituía na maior motivação pessoal para os seus esforços de investigação científica.
Por outro lado, Newton jamais pretendeu defender a validade das suas proposições apenas com base nessas suas crenças acerca de um Deus único, criador e preservador do mundo. Ou seja, de certa forma, no campo estrito da metodologia da investigação científica, Newton já praticava a separação entre ciência e religião, proposta por Francis Bacon, fazendo uso da razão, da experiência e da matemática.
Para A. Smith, nas suas próprias palavras, “Ciência é o maior antídoto contra o veneno do entusiasmo e superstição”3 Essa afirmação demonstra que ele já havia percebido um dos principais atributos do que deveria ser a moderna ciência empírica. Mas demonstra, também, que na sua época ainda não se fazia uma distinção clara entre filosofia e ciência. O próprio Smith usava as duas palavras de forma intercambiável, conforme indicam outras afirmações suas, que citamos a seguir: 1. “Filosofia, … aquela ciência que pretende abrir as conexões ocultas que unem as várias aparências da natureza”4 2. “Filosofia é a ciência dos princípios conectores da natureza”5
Smith nunca pretendeu explicar diretamente a sua concepção sobre Deus. Mas a sua obra, excetuando o livro A Riqueza das Nações, e com destaque para A Teoria dos Sentimentos Morais, contém inúmeras passagens que não deixam dúvidas de que ele, tal como Newton, foi monoteísta – e assim se manteve, até a morte (o que não significa que ele estivesse inteiramente de acordo com a teologia cristã, católica ou reformista).
Diferentemente de Newton, porém, não se conhece evidências de que Smith tenha tido interesse em supostas provas sobre a existência de Deus por meio da razão, embora ele tenha sido professor de Religião Natural na Universidade de Glasgow, por vários anos. Contudo, o fato de não se interessar por debates intelectuais sobre esses temas não impede que ele tenha tido uma concepção íntima sobre a unidade e Deus semelhante à de Newton.
Visão Intuitiva do Mundo
Parece-nos existirem evidências na obra de A. Smith de que ele tinha uma visão intuitiva de mundo semelhante à de Newton. O uni-verso seria a diversidade na unidade. Tudo estaria conectado, no universo. Nada está – ou deveria estar – separado.
Uma outra definição de ciência (filosofia) por A. Smith foi feita nos seguintes termos: “A filosofia, ao representar as correntes invisíveis que unem todos esses objetos desconexos, se esforça para introduzir ordem no caos das aparências dissonantes e discordantes, para acalmar esse tumulto da imaginação”6
Ou seja, A. Smith parece considerar que a ignorância – a carência de conhecimento sobre si mesmo e sobre o mundo – faz com que o ser humano se separe dessa unidade cósmica. Essa separação, mesmo inconsciente, se torna motivo de desconforto, infelicidade e “tumulto da imaginação”. Para ele, a filosofia (ciência) e o monoteísmo são expressões da busca do conhecimento que podem permitir a percepção das conexões que unem partes aparentemente desconexas. Essa percepção contribui para acalmar o “tumulto da imaginação”. Mas, para A. Smith, o gradual avanço do conhecimento nunca acalma completamente esse tumulto, pois a ciência nunca alcança a verdade absoluta.
Newton lidou com ciências naturais (Filosofia Natural, na sua época), especialmente a Física, enquanto A. Smith escreveu sobre ciências humanas e sociais (Filosofia Moral, na sua época), que nem sempre podem ser objeto de demonstrações científicas inquestionáveis. Mesmo assim, Smith também nunca pretendeu que a validade das proposições da sua obra dependesse apenas da crença em Deus. Certamente não se encontra nessas referências a Deus7 no livro A Teoria dos Sentimentos Morais a explicação para o crescente interesse recente em Smith, não somente como precursor da ciência econômica, mas também como Filósofo Moral. Esse fenômeno será objeto da nossa análise nas próximas postagens.
É também inteiramente falsa a ideia de que A. Smith se baseou num suposto providencialismo – seja ele de natureza divina, natural, ou estoica … para defender a existência de um “observador imparcial” e de uma “mão invisível” que representariam uma panaceia para todos os problemas morais e econômicos da humanidade. A justificativa para essa afirmação também demandará o espaço de algumas outras futuras postagens.
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REFERÊNCIAS
1. Aristóteles, Metaphysics, Livro I, Parte 1. Tradução de W. D. Ross;
2. Samuel Fleishacker, “On Adam Smith´s Wealth of Nations”, Princeton University Press, 2005, pgs. 72;
3. Adam Smith, A Riqueza das Nações, V.i.g.14. pg. 796;
4. Adam Smith, Ensaios sobre Temas Filosóficos, III.3, pg. 51;
5. Adam Smith, Ensaios sobre Temas Filosóficos, II.12., pg. 45;
6. Adam Smith, Ensaios sobre Temas Filosóficos, II.12, pgs. 45-6;
7. Por exemplo: “Em cada parte do universo observamos meios ajustados da melhor maneira aos fins que eles pretendem produzir … Quando por princípios naturais somos levados a atingir aqueles fins que uma razão refinada e iluminada nos recomendaria, nos sentimos aptos a imaginar aquilo como sendo a sabedoria do homem, a qual na realidade é a sabedoria de Deus” – Adam Smith, Teoria dos Sentimentos Morais, II.ii.3.5., pg. 87.



