“…é, portanto, correto ver um traço anticlerical em Adam Smith. Mas alguém pode ser anticlerical sem ser antirreligioso. E essa, claramente, é a posição de Adam Smith… Ele faz parte dos pensadores iluministas que almejaram a chegada de uma religião moral universal, que preservasse as partes moralmente valorosas do judaísmo, cristianismo e islamismo, e descartasse seus rituais e credos sectários.” — Samuel Fleishacker, “On Adam Smith´s Wealth of Nations”, Princeton University Press, 2005, pgs.71-2.
Mesmo depois de décadas de reinterpretação da obra de A. Smith, especialmente depois da publicação da Glasgow Edition, até hoje persistem agudas controvérsias acerca de diferentes aspectos das suas ideias e proposições. Um desses aspectos concerne à natureza da sua relação pessoal com a religião e possíveis influências dessa relação sobre o conteúdo da sua obra.
Controvérsias Resilientes
Sabe-se que boa parte dos Iluministas eram ateus ou céticos, e consideravam que as religiões são apenas um produto do medo, que também contribuem para o fanatismo e as guerras. Alguns comentadores pensam que A. Smith fazia parte dessa corrente (ver Peter Minowitz, em “Profits, Priests and Princes” – Stanford University Press, 1993; Kennedy, G – 2013 – “Adam Smith on Religion” – Oxford Handbook of Adam Smith, Oxford University).
Outros afirmam exatamente o oposto: que ele teria sido profundamente religioso até o final da sua vida, havendo até mesmo entre esses quem entenda que as suas obras podem ser consideradas teológicas (ver Anthony Waterman, “Economics as Theology: Adam Smith Wealth of Nation”, Southern Economic Journal 68, número 4).
Outros, ainda, asseguram que ele teria sido um “ateísta prático”, para quem a virtuosidade é importante por razões objetivas, já que pode produzir resultados bons, individual e coletivamente. Um “ateísta prático” se contrapõe aos “teístas”, para quem as ações virtuosas devem ser praticadas fundamentalmente porque foram comandadas por Deus (Ver Dunn, John, “From Applied Theology to Social Analysis: The Break Between John Locke and the Scottish Enlightenment, em Istvan Hont and Michael Iganatieff (eds), Wealth andVirtue – Cambridge: Cambridge University Press, 1983).
Há, ainda, os que consideram que, embora tenha abandonado o Cristianismo em algum momento da sua maturidade, ele permaneceu um teísta até a morte (Ver Daniel D. Raphael, “The Impartial Spectator”, Oxford University Press, 2007, pg. 104).
Entendemos que tantas divergências são não somente injustificadas, mas dificultam desnecessariamente a compreensão da unidade da obra de A. Smith.
Natureza da Relação de A. Smith com o Conhecimento, a Filosofia e a Religião
Vimos que o curso de Filosofia Moral do qual A. Smith foi o Professor Titular em Glasgow abrangia quatro partes, e a primeira era Teologia Natural (ou Religião Natural). Infelizmente, nada se tornou conhecido especificamente sobre essa parte do seu curso. Mas se dispõe de outras informações que podem ser indiretamente úteis para tal objetivo.
As origens e motivações da filosofia foram analisadas por A. Smith nos seus “Ensaios sobre Temas Filosóficos”, especialmente na parte dedicada à História da Astronomia.
“Filosofia, por representar os canais invisíveis que reúnem todos esses objetos desconexos, procura introduzir ordem no caos de dissonantes e discordantes aparências, visando apaziguar esse tumulto da imaginação…” (Adam Smith, Essays on Philisophical Subjects, II.12. pgs., 45-6 – Glasgow Edition).
Depois de tecer comentários sobre o período do conhecimento anterior à Filosofia A. Smith explica o que motiva o surgimento desta:
“Saber, portanto, e não qualquer expectativa de vantagens a retirar das suas descobertas, é o primeiro princípio que motiva a humanidade para o estudo da Filosofia, daquela ciência que pretende descobrir as conexões ocultas que unem as várias aparências da natureza; e eles perseguem esse estudo para o seu próprio bem, como um bem ou prazer original em si mesmo, e não como um meio para a obtenção de muitos outros prazeres”.
Esse entendimento ressalta: 1. que a motivação e inspiração da Filosofia – que era também a ciência daquela época – era compreender a “diversidade na unidade”; 2. essa busca do saber era suficiente em si mesma, e não “um meio para a obtenção de muitos outros prazeres”. Isso explica a razão pela qual a palavra Philosophia significava “amor à sabedoria”.
Muito sugestivo também o seguinte comentário:
“Assim que o Universo foi considerado como uma máquina completa, como um sistema coerente, regido pelas leis gerais, e direcionado para fins gerais, ou seja, para sua própria preservação e prosperidade, e de todas as espécies que nele estão; a semelhança que evidentemente tinha com aquelas máquinas que são produzidas pela arte humana, necessariamente impressionou aqueles sábios com uma crença. Que, na formação original do mundo, deve ter sido empregada uma arte semelhante à arte humana, mas tão superior a ela, quanto o mundo é superior às máquinas que a arte produz. A unidade do sistema, que, segundo essa filosofia antiga, é mais perfeita, sugeriu a ideia da unidade desse princípio, por cuja arte foi formada. E assim, como a ignorância gerou superstição, a ciência deu origem ao primeiro teísmo que surgiu entre essas nações que não foram iluminadas pela divina Revelação” (Adam Smith, História da Física Antiga, pgs.113-14).
Ou seja, para A. Smith, a mesma postura que conduziu os primeiros filósofos a fazerem a passagem da época da supertição para a época da Filosofia, os levou a fazerem também a passagem da época da fragmentação do politeísmo para a época da percepção da Unidade (do mono teísmo). Percepção do mono teismo essa que em outras nações teria ocorrido por meio da “divina Revelação”. Isso significa que, para ele, a percepção da Unidade e de uma arte superior que teria sido empregada na formação original do mundo, ocorreu tanto no surgimento da Filosofia, quanto na Revelação que deu origem às religiões monoteístas.
Segundo esse entendimento de A. Smith, Filosofia e Religião Monoteísta surgiram ambas como fruto da mesma motivação: a necessidade de autoconhecimento e de conhecimento – o “amor à Sabedoria”. Isso nos parece compatível também com a relação tão próxima que sabidamente existiu entre alguns dos primeiros cristãos e a filosofia estoica. Como também com o empenho dos teólogos Agostinho e Tomás de Aquino de demonstrarem que não existiriam incompatibilidades essenciais entre a fé cristã e, respectivamente, as filosofias de Platão e de Aristóteles.
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REFERÊNCIAS
Disponibilizadas, respectivamente, no texto.