Adam Smith, Renascimento e Iluminismo (Terceira Parte)

“(Francis) Bacon desfraldou o estandarte de todas as ciências e atraiu para elas as mentes mais ávidas dos séculos seguintes Independentemente da sua vontade, a iniciativa para a qual fora convocado – organizar de modo inteligível a pesquisa científica, a expansão ecumênica e a disseminação do conhecimento – continha em si as sementes do drama mais profundo dos tempos modernos: o cristianismo, católico ou protestante, travando uma luta de vida e morte contra a difusão da ciência e da filosofia. Esse drama acabara de enunciar para o mundo o seu prólogo.” — Will Durant¹

Vimos que a filosofia clássica grega foi o conhecimento dominante no ocidente, antes do surgimento do cristianismo. Quando o cristianismo se tornou a religião oficial do império romano, no século IV, teve início um longo período, durante toda a Idade Média, ao longo do qual o cristianismo foi se tornando dominante. Quando surgiu o Iluminismo na Europa, nos séculos XVII e XVIII, vários dos seus grandes líderes intelectuais se empenharam em resgatar, de novo, a dominância da razão e da filosofia, relativamente ao cristianismo católico e protestante.

Essa renovação da importância relativa atribuída à razão acabaria por levar a três tipos de proposições: 1. Valorização de uma auto ética – uma ética mais dependente da razão individual e menos de regras morais ou religiosas pré-estabelecidas; 2.  Separação entre ciência e religião; 3. Separação entre Estado e religião (laicismo).

Escrevemos, na postagem anterior, que a concordância de A. Smith com as novas ideias e proposições do Iluminismo e da Religião Natural demandaria algumas qualificações. Quais seriam elas? Para responder a essa pergunta vamos examinar de que forma alguns filósofos importantes do iluminismo se posicionaram frente a cada uma dessas novas proposições acima mencionadas. E, em seguida, qual foi o posicionamento de A. Smith acerca de cada uma delas.

Francis Bacon e a Separação entre Ciência e Religião

Quase dois séculos antes de Kant o filósofo, escritor e político Francis Bacon (1561 – 1626) já havia se posicionado na vanguarda da chamada “Idade da Razão”. Mas agora atribuindo um novo papel a esta razão. Bacon não foi um cientista, mas sim um dos mais importantes percussores da filosofia da ciência moderna.

Ocorre que Aristóteles tinha escrito uma obra intitulada “Organum” (“instrumento”, ou “ferramenta”, em grego), na qual pretendia descrever como se chega ao conhecimento verdadeiro por meio da razão e dos métodos dedutivo e indutivo. Bacon argumentou que Aristóteles tratava o conhecimento apenas como algo contemplativo e especulativo, sem qualquer interesse por suas aplicações práticas em benefício da humanidade. Essa discordância da motivação e do método do “velho Organum” de Aristóteles, e de toda a filosofia escolástica posterior a ele, Bacon formalizou por meio da sua mais importante obra. E a intitulou de “Novum Organum” (Novo Organum).

Esse novo entendimento sobre qual deveria ser uma das mais importantes funções da razão, e a demonstração do método por meio do qual ela poderia ser praticada, se constituíram nas sementes da ciência moderna experimental, que surgiria concretamente mais de um século depois.

Francis Bacon era profundamente comprometido com a religião anglicana, costumando participar com frequência de ofícios religiosos durante toda a vida adulta. Mas para ele, fé e religião deveriam se ater aos objetos do conhecimento para os quais a ciência e a filosofia não conseguem encontrar evidências. Já a filosofia deve depender apenas da razão; e a ciência, se restringir a conclusões para as quais existem evidências práticas. Para ele, “Um pouco de filosofia inclina a mente humana para o ateísmo, mas o aprofundamento da filosofia reaproxima a mente humana da religião”2

Tal como o seu homônimo, o Frade Roger Bacon, tinha pedido a aprovação do Papa para a sua principal obra intitulada “Opus Maius” (“Obra Maior”), três séculos antes, Francis Bacon também pediu a aprovação do monarca Jaime I, chefe da Igreja Anglicana, para a sua principal obra, “Novum Organum”.

John Locke, Tolerância Religiosa e a Separação Entre Estado e Religião

John Locke (1632 – 1704) foi um filósofo e médico inglês que aportou importantíssima contribuição para a Teoria do Contrato Social. A sua obra política mais importante se intitula “Dois Tratados sobre o Governo Civil”, de 1680.

Locke foi criado no seio do anglicanismo, mas desenvolveu uma visão muito pessoal e racional sobre o conceito e funções da religião. Em outra obra intitulada “Carta sobre a Tolerância”, publicada em 1689, foi um dos primeiros a formular uma defesa da separação entre Igreja e Estado, o laicismo. Ele argumenta que ninguém deveria ser forçado a seguir uma religião específica e que o membro de uma religião não tem o direito de acusar de heresia membros de outra religião. A fé deve ser uma escolha voluntária, e o Estado não deve interferir nas crenças individuais.

Para Locke, a igreja era uma associação voluntária, e não uma instituição que deveria ter poder político. Ele rejeitava enfaticamente a ideia do “direito divino dos reis”, do absolutismo, e defendia que o governo deveria proteger os direitos civis, não impor doutrinas religiosas. Condenava o fanatismo religioso com o mesmo entusiasmo com que valorizava os princípios morais do cristianismo – como a benevolência e a caridade.

Para ele, cabe ao Estado cuidar da vida civil, proteger os direitos de propriedade, a segurança e a liberdade legítima, enquanto a religião trata da salvação espiritual. Observe-se que Locke foi mais um dos grandes personagens do Iluminismo cuja enfática defesa da razão, da filosofia e mesmo da separação entre estado e religião, não o afastou de uma religiosidade e concepção sobre a importância de Deus para a condição humana. O seu liberalismo e tolerância não foram suficientes para que ele aceitasse a tolerância com o ateísmo, pois achava que a negação de Deus destruía tudo que a sociedade poderia ter de benéfico.

Immanuel Kant, Ética e Religião

Immanuel Kant (1724 – 1804) foi um filósofo prussiano, amplamente considerado o mais importante da era moderna. Conforme reproduzimos na postagem anterior, para ele o Iluminismo deveria ser, antes de tudo, “a saída do homem de sua menoridade autoimposta” – a conquista de uma consciência moral autônoma. Sapere Aude! Tenha coragem de usar o seu próprio entendimento sobre a sua forma de vida – a sua ética pessoal! Numa outra famosa frase ele se refere a esse mesmo tema: “Duas coisas me enchem o ânimo de admiração e veneração sempre nova e crescente: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim”3

Kant esteve muito ligado, desde a infância, ao pietismo luterano, uma vertente do protestantismo que surgiu na Alemanha. O pietismo valorizava a vida ética e a prática religiosa interior e influenciou profundamente sua formação moral e intelectual. Na fase mais madura da sua vida e pensamento filosófico desenvolveria uma visão bem mais crítica da religião institucionalizada, defendendo que ela deveria estar subordinada à razão prática, ao dever moral, e não a dogmas. Ele expôs esse pensamento destacadamente em sua obra intitulada “A Religião nos Limites da Simples Razão”, publicada em 1793.

Nas próximas postagens veremos a posição de A. Smith acerca desses temas surgidos com tanta força no Iluminismo, e que seguem, até hoje, ocupando espaço da maior importância no processo civilizatório. Assim, portanto, necessariamente estaremos abordando também os motivos pelos quais as suas ideias continuam sendo relevantes para importantes debates contemporâneos, tal como consideram inúmeras opiniões.

Periodicamente, poderemos realizar reuniões online dedicadas exclusivamente a esclarecer dúvidas e compartilhar ideias sobre o conteúdo até então já disponibilizado neste blog.

Para mais informações entre em contato com a Organizadora do Autor: 

Jacqueline Lima
O ESPAÇO DE CRIAÇÃO
E-mail: oespacodecriacao@gmail.com

REFERÊNCIAS

1. Durant, Will, “Heróis da História”, 2012, Coleção LPM Pocket, Pg. 376;
2. Francis Bacon, Ensaio sobre Ateísmo, 1625;
3. Nas páginas finais da obra “Crítica da Razão Prática” (Kritik der PraktischenVernunft), publicada originalmente em 1788.

Compartilhe!
Rolar para cima