“… provavelmente poderiam, com o tempo, reduzir a doutrina da maior parte deles àquela pura e racional religião, livre de cada mistura de absurdo, impostura ou fanatismo, tal como os homens sábios de todas as épocas do mundo sempre desejaram ver estabelecida” — Adam Smith¹
O nosso tema atual diz respeito à relação de A. Smith com o Renascimento e o Iluminismo. Na postagem anterior, fizemos referências destacadamente sobre o Renascimento e suas origens. Vamos agora, portanto, dedicar um pouco mais de atenção ao Iluminismo, com ênfase naqueles aspectos que dizem mais respeito ao nosso tema.
Cristianismo – Um dos Fenômenos Mais Influentes e Duradouros da História
Qualquer mínima compreensão do Iluminismo, cujo nascimento se deu destacadamente na Grã-Bretanha (Escócia e Inglaterra), França e Alemanha, nos séculos XVII e XVIII, exige que se tome em conta o papel do cristianismo na história da Europa.
Sabe-se que logo após a morte de Jesus os primeiros cristãos continuaram sendo perseguidos, torturados e mortos pelo império romano. Mas a partir do final do primeiro século, principalmente devido ao trabalho anterior de Paulo (Saulo) de Tarso, o cristianismo passou a conquistar um número crescente de seguidores também entre os romanos, até se tornar a religião oficial do império por meio de iniciativas dos imperadores Constantino (século IV), Teodósio (século IV) e Justiniano (século VI). Depois da queda do império romano do Ocidente quase todos os governantes passaram a procurar o apoio da Igreja Católica para ajudá-los a se manterem no poder.
Como destacou A. Smith, a religião, “mesmo em sua forma mais rude”, antes mesmo do surgimento da Filosofia, exerceu um papel importante para o controle social, a convivência civilizada e a felicidade humana.2 Mas essa influência da igreja católica – e também do Luteranismo e Calvinismo a partir dos séculos XV e XVI – sobre a política, a governança, a economia, e todos os aspectos da vida humana, só começou a ser questionada com o surgimento do Iluminismo, nos séculos XVII e XVIII. Observe-se que durante o período do absolutismo, que correspondeu à transição entre o feudalismo e o mercantilismo, durante os séculos XVI a XVIII, a aliança do clericalismo cristão com os governantes procurava convencer a população de que eles eram representantes incontestes do próprio Deus na terra.
Cristianismo e Filosofia Grega
Como ressaltamos anteriormente, já entre os séculos II e V d. C personagens como Clemente de Alexandria, Orígenes e Santo Agostinho tinham se empenhado em demonstrar que a filosofia grega clássica e o neoplatonismo não eram incompatíveis com o cristianismo. Ou seja, a racionalidade da filosofia clássica grega não seria incompatível com a fé e revelação do cristianismo. Entre os séculos IX e XII, personagens como Al-Farabi, Avicena e Averróes adotaram a mesma posição acerca da relação entre a filosofia grega clássica e o islamismo. No século XII Maimônides fez o mesmo em relação ao judaísmo. E no século XIII, Tomás de Aquino retomaria essa avaliação no seio do cristianismo, com a Escolástica. Ou seja, desde antes do início da Idade Média até aproximadamente o século XIII (entre o Renascimento e o Iluminismo), os grandes pensadores do cristianismo tinham respeito pela filosofia grega clássica e pelo neoplatonismo. Mas sempre mantinham a posição de que a fé cristã e a revelação eram meios de conhecimento da realidade mais importantes que o racionalismo filosófico.
O que Foi o Iluminismo?
Uma das características definidoras do Iluminismo foi o fortalecimento da importância relativa atribuída à razão filosófica. Esse foi o caso não somente de filósofos agnósticos ou ateus, como David Hume, mas também de cristãos como Francis Bacon, Francis Hutcheson, John Locke, Adam Smith e Immanuel Kant. O Iluminismo enfatizava a necessidade de que as pessoas fossem capazes do pensar e agir por si mesmas, usando a própria razão, sem a necessidade de que outros lhes dissessem como fazer isso. Essa nova demanda por uma autonomia pessoal e auto ética foi descrita por Immanuel Kant com as seguintes palavras:
O Iluminismo é a saída do homem de sua menoridade autoimposta. A menoridade é a incapacidade de usar o próprio entendimento sem a orientação de outro. Essa menoridade é autoimposta quando sua causa não reside na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem para usá-lo sem a orientação de outro. Sapere Aude! Tenha coragem de usar o seu próprio entendimento! — esse é o lema do Iluminismo.3
O Iluminismo e a Religião Natural, ou Teologia Natural
Foi isso que levou esses filósofos a passarem a defender uma nova abordagem da religião tradicional que tanta influência exercia sobre o ensino nas universidades europeias, desde suas fundações. Essa nova abordagem passou a ser chamada de Religião Natural, ou Teologia Natural. Uma definição dessa “Religião Natural” foi dada por Francis Bacon no início do século XVII: “É a filosofia divina derivável de Deus por meio da luz da natureza, e a contemplação das Suas criaturas; de modo que, no que concerne ao seu objeto, é verdadeiramente divina; mas no que concerne à sua aquisição, é natural”.4
Para Bacon, o objetivo da Religião Natural era compreender os caminhos de Deus por meio do exame do mundo natural. Segundo ele, Deus teria escrito dois “livros” para facilitar vislumbres da humanidade sobre Si mesmo: as Escrituras Sagradas e o “livro” representado pela própria natureza. O completo conhecimento do Deus criador transcendente estaria sempre fora do alcance da humanidade. Mas a aproximação de Deus poderia ser cultivada não somente por meio da revelação contida nos livros sagrados, mas também por meio da apreciação e gradativa compreensão das maravilhas da natureza e suas leis.
Mas várias outras profundas mudanças viriam a resultar dessa nova mentalidade. Agora, por exemplo, o entendimento das leis da natureza permitiria não somente a alegria do conhecimento contemplativo, mas também o desenvolvimento de uma ciência colocada a serviço do conforto e bem-estar material da humanidade. Isso viria ao encontro de uma nova mentalidade que desde alguns séculos já se tornara cada vez mais favorável à superação da pobreza e acúmulo de riquezas materiais. Veremos, bem mais adiante, que foi nesse contexto que A. Smith viria a decidir escrever o livro A Riqueza das Nações.
Como vimos, usualmente se considera que o Renascimento na Europa floresceu entre os séculos XIV e XVI e foi mais de natureza artística e cultural. O Iluminismo ganhou força na Idade Moderna, nos séculos XVII e XVIII. Fortaleceu o espírito crítico e racional do Renascimento, mas a isso acresceu outras mudanças com implicações econômicas, sociais e políticas da maior importância. Rompeu com o absolutismo e propôs ideias políticas revolucionárias, como o contrato social, o liberalismo e a separação dos poderes. Influenciou revoluções, como a francesa e a americana.
Relação de A. Smith com o Iluminismo, a Religião Natural e a Ciência Moderna
A citação literal de A. Smith que fizemos na abertura dessa postagem, como também o comentário feito por ele criticando o estado do ensino nas universidades da Inglaterra, na sua época (mencionada em postagem anterior), parecem indicar, à primeira vista, que ele concordou, sem reservas, com as demandas do Iluminismo e da Religião Natural. Esperamos poder apresentar evidências, nas próximas postagens, de que esse é um entendimento essencialmente correto – mas que exige importantes qualificações. Obviamente, isso segue tendo importância crucial para a compreensão da sua obra.
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REFERÊNCIAS
1. Adam Smith, Livro “A Riqueza das Nações”, V.i.g.8., pg. 793;2. Adam Smith, A Teoria dos Sentimentos Morais, III.5.4., pg. 164;
3. Immanuel Kant, “Resposta à pergunta: Que é o Iluminismo?” (Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?), publicado em 1784 na revista Berlinische Monatsschrift;
4. Francis Bacon, 1605, “The Advancement of Learning Divine and Human”. Translated by Wood, edited by Dever, New York, Collier 1901 – Pg.142).