Adam Smith, Renascimento e Iluminismo (Primeira Parte)

“A paisagem rica e notável que contemplamos em ‘O Ornamento do Mundo’ remonta à chamada Idade das Trevas, mas o livro em si não poderia ser mais oportuno ou mais encorajador. Maria Rosa Menocal nos mostra um momento raro na história, quando Muçulmanos, Cristãos e Judeus encontraram um caminho para viverem em paz e prosperidade. Um livro iluminador e inspirador” — Jonathan Kirsch, Los Angeles Times¹

O Renascimento e o Iluminismo são amplamente conhecidos como fenômenos socioeconômicos/políticos/culturais de enorme importância na história da Europa. Gostaríamos de mencionar aqui aspectos dos dois – especialmente do Iluminismo – que estão intimamente relacionados com a obra filosófica e econômica de A. Smith.

É bastante comum a tendência de personalizarmos com algum exagero o mérito ou demérito de diferentes fases do processo civilizatório, esquecendo que esses personagens são também, por assim dizer, frutos do processo civilizatório. Os personagens que fazem a história são feitos por ela.

Por exemplo, a afirmação de que A. Smith foi o “pai da ciência econômica moderna” é justificada. Mas pode não levar devidamente em conta, também, que ele aportou um destacado impulso para a consolidação de tendências que já se verificavam há séculos. Exemplo de duas dessas tendências: 1. O resgate de valores da filosofia grega clássica e a valorização do humanismo e da razão; 2. Uma nova mentalidade mais favorável à superação da pobreza material.

O fim do Império Romano do Ocidente, no ano 476 d.C., é usualmente considerado o início da Idade Média na Europa Ocidental. O seu final costuma ser associado à conquista de Constantinopla pelo Império Otomano, em 1453. É comum se considerar a quase totalidade dos dez séculos entre essas datas como a “idade das trevas”. Como surgiu, então, o Renascimento?  O que “renascia”, com o renascimento, e como?

Adam Smith, e a Filosofia Antiga e Contemporânea, na Europa da sua Época

Reconsideremos parte de uma citação literal de Adam Smith que fizemos na postagem anterior, descrevendo o que seria o estado do ensino da Filosofia Moral em grande parte das universidades da Europa, no século XVIII:

“Na filosofia antiga, a perfeição da virtude era representada como necessariamente produtiva para a pessoa que a possuía, da mais perfeita felicidade, nesta vida. Na filosofia moderna, ela foi frequentemente representada como, geralmente, ou quase sempre, inconsistente com qualquer grau de felicidade nesta vida. E o paraíso era para ser conquistado somente pelos sofrimentos e mortificações, pelas austeridades e degradações de um monge, não pela liberal, generosa e espirituosa conduta de um homem… O mais importante de todos os diferentes ramos da filosofia (a filosofia moral), se tornou, dessa maneira, de longe, o mais corrompido”.

A “filosofia antiga” a que A. Smith se referia nessa passagem era, especialmente, a filosofia grega. do período clássico (Sócrates, Platão e Aristóteles), passando pelo estoicismo, até o neoplatonismo, no século III d.C. Os primeiros integrantes da chamada Filosofia Patrística, nos primeiros séculos do Cristianismo, já tinham desenvolvido uma convivência muito empática com essa filosofia grega, especialmente com Platão, Aristóteles, os primeiros estoicos e Plotino.

Depois da queda do Império Romano do Ocidente, em 476 d.C., teve prosseguimento o Império Romano do Oriente – ou Império Bizantino. No século VI o imperador Justiniano fechou as Escolas de Atenas (fundada por Platão por volta de 387 a.C.) e de Alexandria e proibiu que a filosofia grega fosse ensinada em todo o império, por ser considerada incompatível com o Cristianismo – tornado pelo próprio Justiniano a nova religião oficial do império.

Teria isso resultado na “morte” da filosofia grega clássica, que viria a “renascer” somente no chamado Renascimento Europeu? Na verdade, foi o início de sua expansão. O mundo islâmico preservou esse legado, criando escolas filosóficas que moldariam o pensamento global durante os próximos séculos. A. Smith identificou claramente esse fenômeno.

Adam Smith sobre as Origens do Renascimento Europeu

“A ruína do império romano (do Ocidente), e, em sequência, a subversão da lei e da ordem que aconteceu poucos séculos depois, produziu a completa negação daquele estudo dos princípios da natureza para o qual o lazer e a segurança são indispensáveis (a filosofia antiga). Depois da queda daqueles grandes conquistadores e civilizadores da humanidade (os romanos), o império dos Califas (império árabe) parece ter sido o primeiro estado sob o qual o mundo gozou daquele grau de tranquilidade que o cultivo das ciências exige. Foi sob a proteção daqueles generosos e magníficos príncipes que a antiga filosofia e astronomia dos gregos foram restauradas e estabelecidas no Oriente. Aquela tranquilidade que os seus moderados, justos, e religiosos governantes difundiram sobre o seu vasto império (o império árabe) reviveu o interesse da humanidade por investigar os princípios da natureza”.2

Adam Smith relata aqui algo que é do conhecimento dos historiadores, mas, em geral, é pouco conhecido no Ocidente. Que diante do fechamento das escolas de Atenas e de Alexandria poucas décadas antes do surgimento de Maomé e do Islamismo, vários filósofos ligados à tradição grega emigraram daquelas cidades. Principalmente para a Pérsia, que viria a fazer parte do Império Árabe entre 633 e 651 d.C., e para Harran (na atual Turquia). Essas cidades se tornaram centros de transmissão do pensamento grego para o mundo islâmico, especialmente após a sua expansão, a partir do século VIII.

No ano 711 d.C. os árabes conquistaram grande parte da península ibérica, estabelecendo o território conhecido como Al-Andalus, que se tornou um emirado sob o Califado Omíada. Esse período exibiu um florescimento cultural e científico impressionante. Cidades como Córdoba, Sevilha e Granada se tornaram centros de conhecimento e arte.

Não terá sido por acaso que naquela época e região da Espanha andaluz nasceram também grandes filósofos/sábios/místicos como Ibn-Arabi (nascido em Cádiz, no ano 1.165) e o judeu Maimônides (nascido em Córdoba, no ano 1.138). Durante os séculos XII e XIII, monges cristãos e estudiosos judeus e muçulmanos trabalharam na famosa Escola de Tradutores de Toledo, um centro multicultural de tradução que teve papel essencial na preservação e disseminação do conhecimento antigo.

Obras filosóficas e científicas de Platão, Aristóteles, Galeno, Hipócrates, Ptolomeu e outros gregos, que haviam sido traduzidas para o árabe durante a Idade de Ouro Islâmica, foram então traduzidas do árabe para o latim. Essa ponte intelectual permitiu que o pensamento grego, agora comentado por filósofos islâmicos como Al-Farabi, Avicena e Averróis, desse prosseguimento à mutuamente respeitosa convivência com as religiões monoteístas (no caso do cristianismo, especialmente com a Escolástica e Tomás de Aquino). A Europa medieval passou a ter acesso a obras fundamentais de lógica, medicina, matemática, astronomia e filosofia. Essa transmissão de saber foi um dos motores do Renascimento no século XII e plantou as sementes para o florescimento intelectual da Baixa Idade Média e do Renascimento posterior. O último reduto muçulmano em Al-Andaluz foi o Reino de Granada, que caiu em 1492, quando os Reis Católicos Fernando e Isabel conquistaram a cidade.

A queixa de A. Smith sobre a Filosofia Moral ensinada em parte das universidades da Europa no século XVIII dizia respeito à prevalência da teologia – principalmente a anglicana, e particularmente na Universidade de Oxford – que a distanciara das suas origens. Por isso, os entusiastas do Iluminismo na Grã-Bretanha demandavam a introdução do ensino da chamada Religião Natural nas universidades, o que supostamente a reaproximaria da filosofia antiga. Na próxima postagem buscaremos indicações de como deve ter sido, mais precisamente, a relação de A. Smith com essa Religião Natural, da qual foi professor na universidade de Glasgow.

Periodicamente, poderemos realizar reuniões online dedicadas exclusivamente a esclarecer dúvidas e compartilhar ideias sobre o conteúdo até então já disponibilizado neste blog.

Para mais informações entre em contato com a Organizadora do Autor: 

Jacqueline Lima
O ESPAÇO DE CRIAÇÃO
E-mail: oespacodecriacao@gmail.com

REFERÊNCIAS

1. Maria Rosa Menocal, “The Ornament of the World: How Muslims, Jews and Christians Created a Culture of Tolerance in Medieval Spain” – 2002, Little, Brown and Company Ed).
2. Adam Smith, “Ensaios sobre Temas Filosóficos”, págs. 67-8.


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