Adam Smith e Formas do Conhecimento – Filosofia, Ciência, Religião (Parte 5)

“O clero de qualquer igreja estabelecida constitui uma grande organização. Eles podem agir em comum acordo, e perseguir os seus interesses acerca de um plano e uma motivação, tanto como se estivessem sob a direção de um homem; e eles estão frequentemente também sob tal direção. O seu interesse como um corpo organizado nunca é o mesmo do governante, e algumas vezes é diretamente oposto a ele. O seu grande interesse é manter a sua autoridade sobre o povo… Se o governante tiver a imprudência para parecer zombar ou duvidar da mais insignificante parte da sua doutrina, …a escrupulosa honra de um clérigo que não tem qualquer tipo de dependência dele, é imediatamente provocada para condená-lo como uma pessoa profana, e empregar todos os terrores da religião com o objetivo de forçar as pessoas a transferir o seu compromisso de fidelidade para algum governante mais ortodoxo e obediente. …os governantes que se atreveram dessa maneira a se rebelarem contra a igreja, além e acima desse crime de rebelião, têm geralmente sido acusados também com o crime adicional de heresia” — Adam Smith¹

Na postagem anterior expressamos a nossa avaliação de que não deveria restar dúvidas sobre o teísmo de Adam Smith até o final da sua vida. E que uma concepção sobre um Deus único que se interessava pela felicidade humana fez parte essencial da sua vida e obra. A sua espiritualidade e concepção sobre Deus – algo sempre pessoal, íntimo e inexprimível, para qualquer pessoa – não foi modificada frente às grandes dificuldades que ele enfrentou com a teologia e clericalismo das religiões organizadas, principalmente o anglicanismo.

Vamos dar prosseguimento à apresentação dessas evidências usando como referências dois filósofos que tiveram papel crucial na vida de Adam Smith: Francis Hutcheson e David Hume.

O Iluminismo Escocês

Hutcheson nasceu em uma família presbiteriana na Irlanda do Norte em 1694. Estudou teologia na Universidade de Glasgow e chegou a ser licenciado como pregador daquela religião em 1719. Mas optou por não exercer o ministério pastoral, preferindo seguir carreira acadêmica e filosófica. Hutcheson foi um pensador iluminista que conciliava valores cristãos com ideias filosóficas modernas de liberdade, moralidade e empatia.

David Hume era escocês, tendo sido, por sua vez, um dos mais importantes filósofos do iluminismo do seu país e de toda a Europa. Ele também recebeu grande influência das obras de Hutcheson. Mas Hume foi uma exceção entre a maioria dos filósofos daquela época e região: ele era ateu – ou, pelo menos, agnóstico.

Adam Smith só viria a conhecer David Hume pessoalmente depois que retornou de Oxford para Edimburgo, em 1746, ano da morte de Hutcheson, a quem Adam Smith viria a substituir como professor titular da cadeira de Filosofia Moral, na Universidade de Glasgow.   

Na Grã-Bretanha da época de Adam Smith praticamente todo o ensino era controlado pelas religiões – principalmente a presbiteriana, na Escócia, e a anglicana, na Inglaterra. Naquela época a Escócia era uma nação muito mais pobre que a Inglaterra – sequer tinha um parlamento. Curiosamente, no entanto, as universidades da Escócia, como as de Glasgow, Edimburgo, Saint Andrews e Aberdeen, estavam muito mais abertas às demandas e anseios do iluminismo do que todas as instituições de ensino na Inglaterra. Assim, a Escócia teve um papel mais importante para a chegada e consolidação do iluminismo na Grã-Bretanha do que a Inglaterra.

Quando entrou na Universidade de Glasgow, com catorze anos de idade, Adam Smith teve a sorte de ser aluno de filosofia moral de Francis Hutcheson, que viria a ser considerado por alguns historiadores o pai do brilhante iluminismo escocês. Naquele ano Hutcheson tinha 43 anos de idade.

Vimos que Adam Smith concluiu seus estudos na Universidade de Glasgow, na Escócia, e se transferiu para a Universidade de Oxford, na Inglaterra, em 1740, onde permaneceu por seis anos. Foi uma mudança desafiadora. A teologia anglicana era a disciplina dominante na instituição. O ensino era fortemente marcado por dogmas religiosos e conformidade com os 39 Artigos da fé anglicana, os quais todos os alunos eram obrigados a subscrever. Professores e alunos que não se conformavam com a ortodoxia anglicana eram afastados da universidade.

Adam Smith, Teologia e Clericalismo na Universidade de Oxford.

John Rae, um dos mais importantes biógrafos de Adam Smith, descreve um episódio relacionado com David Hume que ilustra o grau da dificuldade que A. Smith enfrentou com a teologia e o clericalismo anglicano, durante os seis anos em que foi estudante em Oxford.2

O jovem estudante A. Smith estava lendo o livro “Tratado sobre a Natureza Humana”, de David Hume. Isso foi percebido por um membro da Universidade, que de pronto o repreendeu asperamente e confiscou o livro.

Anos depois A. Smith viria a se tornar, no círculo intelectual e filosófico de Edimburgo, o mais íntimo amigo de David Hume, em cuja residência se hospedava sempre que ia àquela cidade. Essa amizade se tornaria causa de críticas enfáticas a A. Smith por parte de membros da religião anglicana, até depois da morte de Hume.

A concepção de A. Smith sobre Deus e espiritualidade não o fazia se sentir impedido de compartilhar a amizade e o respeito mútuo com alguém que se considerava ateu, mas que prezava encarecidamente uma forma de vida pessoal íntegra e ética – como foi o caso de David Hume.

Já vimos em postagem anterior que a Universidade de Oxford, na Inglaterra fora fundada com o objetivo principal de instruir candidatos a membros da Igreja Episcopal Escocesa. De forma bem parecida com o que ocorrera com o seu ex-professor Francis Hutcheson em Glasgow, A. Smith tinha interesse em seguir a carreira acadêmica, mas não em ser um clérigo. Por isso em 1746 decidiu que deixaria Oxford e retornaria inicialmente para a sua cidade natal, na Escócia, sem contar, naquela época, com qualquer garantia prévia de trabalho remunerado.

O nosso entendimento, que aqui tentamos compartilhar, foi que entender a relação de A. Smith com a religião demanda uma nítida separação entre: 1) a importância da sua espiritualidade e concepção sobre um Deus único e providencial, para si mesmo e sua obra; 2) a sua dificuldade de lidar com a teologia e o clericalismo das religiões organizadas, da sua época e região.

Nas próximas postagens veremos de que forma A. Smith se relacionou com o iluminismo e a ciência experimental que dela fazia parte. E qual foi a influência que isso exerceu sobre a sua obra filosófica e econômica.

Periodicamente, poderemos realizar reuniões online dedicadas exclusivamente a esclarecer dúvidas e compartilhar ideias sobre o conteúdo até então já disponibilizado neste blog.

Para mais informações entre em contato com a Organizadora do Autor: 

Jacqueline Lima
O ESPAÇO DE CRIAÇÃO
E-mail: oespacodecriacao@gmail.com

REFERÊNCIAS

1. Adam Smith, A Riqueza das Nações, V.i.g.17.
2. “Life of Adam Smith”, John Rae, 1895, 1965.

Compartilhe!
Rolar para cima