“… à maneira de Sir Isaac Newton, podemos estabelecer certos princípios conhecidos ou provados no início, de onde explicamos os vários fenômenos, conectando todos juntos pela mesma cadeia. Este último, que podemos chamar de método newtoniano, é sem dúvida o mais filosófico, e em toda ciência, seja de moral ou filosofia natural, etc., é muito mais engenhoso e, por essa razão, mais envolvente do que o outro. Dá-nos um prazer ver os fenômenos que consideramos os mais inexplicáveis, todos deduzidos de algum princípio (comumente um bem conhecido) e todos unidos em uma cadeia. [Esse método é] muito superior ao método desconectado, por meio do qual tudo é explicado por si mesmo, sem qualquer referência às outras coisas.“ — Adam Smith1
Vamos prosseguir analisando a relação de A. Smith com alguns dos principais aspectos do Iluminismo e, por enquanto, ainda, com o tema da separação entre religião e ciência – em grande parte responsável pelo surgimento da moderna ciência experimental.
Vimos que Francis Bacon (1.561 – 1.626) destacou a necessidade de uma mudança de atitude em relação ao papel da razão e do conhecimento no sentido de que eles passassem a contribuir para a obtenção de resultados práticos, em benefícios do bem-estar da humanidade. Essa mudança, segundo ele, demandaria a criação de uma ciência experimental separada da filosofia e da religião.
A proposição de Bacon foi feita no início do século XVII. Mas o efetivo surgimento da ciência moderna exclusivamente empirista, proposta por ele, só viria a acontecer depois de um período de transição que durou, pelo menos, dois séculos. Foi nesse período de transição que viveram, primeiramente Isaac Newton (1.643 – 1.727), e em seguida, Adam Smith (1.723- 1.790).
Teologia das Religiões Cristãs, Teologia Natural e Ciência Moderna Experimental
Já vimos em postagem anterior que desde Roger Bacon (1.214 – 1.294), quase todos os precursores da ciência moderna na Europa eram religiosos cristãos, que, no entanto, enfrentavam dificuldades com as autoridades eclesiásticas por terem algumas visões do mundo e de Deus divergentes da teologia oficial.
A Patrística de Agostinho e a Escolástica de Tomás de Aquino procuraram conciliar a razão e a filosofia com a teologia cristã. Mas essa teologia cristã continuou sendo o fundamento dominante e isso se transportou para o currículo da maioria das universidades europeias, pelo menos até a época em que viveu Isaac Newton. Nessa época, essa teologia era considerada a “rainha das ciências”, a disciplina suprema que fundamentava todas as demais áreas do saber. Tanto a Filosofia Natural, quanto a Filosofia Moral – as duas divisões da Filosofia naquela época – eram subordinadas à Teologia Cristã Católica ou Reformista.
Isaac Newton era adepto convicto do que logo depois da sua morte viria a ser chamada de Teologia Natural, ou Religião Natural, que viria a substituir gradativamente a Teologia Cristã nos currículos das universidades da Europa. Francis Bacon já havia enunciado e elogiado esse conceito da Teologia Natural, mas de longe o seu mais importante precursor viria a ser Isaac Newton.
Para melhor entender essa afirmação consideremos a mais importante obra de Newton, publicada em 1687 com o título “Princípios Matemáticos da Filosofia Natural”. Foi nela que Newton apresentou, por exemplo, suas Três Leis do movimento e a Lei da Gravitação Universal, que se tornaram pilares da física clássica. Ele usou ferramentas matemáticas inovadoras, como o cálculo – que ele próprio muito ajudou a desenvolver – para explicar o movimento dos corpos celestes e terrestres. O livro marcou o início da física moderna, influenciando profundamente a ciência, durante séculos.
Mas, embora aquele livro tenha sido celebrado como uma obra-prima da física e da matemática, Newton também usou o texto como uma justificativa para a sua convicção pessoal sobre a existência de um Deus supremo, único e providencial. Nos Scholia Generalia (“Escólios Gerais” – Notas Explicativas), que aparecem no final do livro, ele escreve que o sistema solar e os sistemas de estrelas fixas só poderiam ter sido criados por um “Ser inteligente e poderoso”. Ele afirma: “Esse Ser governa todas as coisas, não como a alma do mundo, mas como Senhor de tudo… O Deus Supremo é um Ser eterno, infinito, absolutamente perfeito…”
Numa carta escrita para Richard Bentley em 1692, 05 anos depois da publicação da obra acima citada, Newton afirma que escreveu esse tratado com “um olho nos princípios que podem levar os homens para a crença na existência de uma Divindade, e nada pode me alegrar mais do que considerá-lo útil para esse propósito” 2
Segundo Colin Maclaurin, a ciência de Newton demonstra a unidade, onipotência, onisciência e bondade de Deus, e “nos dispõe a receber o que de outra forma nos poderia ser revelado a respeito dEle”3
Newton e os adeptos do que viria a ser a Teologia Natural acreditavam que o estudo da natureza era uma forma de se aproximar de Deus. Ou seja, encontrar uma explicação científica para qualquer fenômeno da natureza, e compreender seu mecanismo separado de funcionamento, não descarta a tese da criação e desenho inteligente para esse fenômeno. Pelo contrário, a ordem e a harmonia do universo seriam evidências da ação de um Criador. Newton via as leis naturais – a gravidade, por exemplo – como manifestações da vontade divina. Ou seja, o seu sistema de funcionamento da natureza poderia ser considerado mecânico. Mas uma mecânica que teve um criador inteligente e faz parte de uma conexão mais ampla do que pode ser empiricamente percebido.
Separação por Etapas
Observe-se, portanto, que, de início, a adoção da recomendação de F. Bacon de forma alguma retirou Deus da esfera de investigação da ciência, mas apenas a separou da Teologia Cristã. A ciência de Isaac Newton passaria a resultar numa nova Teologia, que já na época de A. Smith seria chamada de Teologia Natural e seria gradualmente adotada nas universidades em substituição à Teologia Oficial Cristã. A Teologia Natural continuava a ter Deus como principal objeto de interesse e investigação. Claro, já que esse Deus teria sido o Criador e Mantenedor Inteligente de toda o Universo – a “Unidade na diversidade”.
Deus e a metafísica só deixaram de ser objeto de interesse da ciência experimental sugerida por F. Bacon no início do século XX, quando a Filosofia da Ciência adotou o critério elaborado por um grupo de filósofos e cientistas que se reunia regularmente na Universidade de Viena (“Círculo de Viena”). Esse critério ficou conhecido como “critério de verificabilidade”. De acordo com ele, somente proposições e entendimentos que sejam passíveis de verificação e confirmação empírica podem ser consideradas científicas. Esse critério resultou em que qualquer proposição em defesa da existência de Deus – ou que dependa da existência de Deus – não pode ser considerada científica.
O Critério da Falseabilidade
Ainda na primeira metade do século XX, na sua obra “A Lógica da Pesquisa Científica”, o filósofo britânico Karl Raimund Popper (1.902 – 1.994) apresentou discordâncias em relação ao critério de verificabilidade. Segundo ele, a ciência não progride por meio de verificações, mas sim por meio de um processo de tentativas, erros e refutações. Mas ele não se limitou a discordar. Apresentou uma engenhosa alternativa (para a época, pelo menos), que ficou conhecida como “critério da falseabilidade”. Segundo esse critério, uma teoria, para ser considerada científica, deve ser passível de refutação por meio de observações ou experimentos. Em outras palavras, uma teoria só pode ser considerada científica se admitir a possibilidade de ser provada falsa. Por esse critério, teorias sobre a existência de Deus – ou que se apoiem na hipótese da sua existência – não podem ser consideradas científicas. Agora, não porque a sua existência não pode ser provada empiricamente. Mas sim porque a sua existência não pode ser provada inquestionavelmente falsa (dessa forma, a Filosofia da Ciência reconhece que a existência de Deus não pode ser verificada empiricamente. Mas também não pode ser inequivocamente negada.
O critério de falseabilidade tem prestígio até hoje dentro da filosofia das ciências. Mas há tempos deixou de ter aceitação unânime. Não nos cabe, aqui, apresentar as complexas discordâncias e alternativas propostas em relação a ele.
Após exibirmos tantas curiosas similitudes entre particularidades de vida e de ideias de A. Smith com Isaac Newton, na próxima postagem iremos indicar de que forma eles tinham também algumas importantes diferenças acerca da percepção sobre ciência, Deus e religião. Vimos insistindo nesse tema porque uma adequada compreensão, tanto dessas semelhanças quanto diferenças, pode ser de grande utilidade para dirimir incompreensões acerca da unidade da obra de A. Smith.
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REFERÊNCIAS
1. Adam Smith, Palestras sobre Retórica e Belas Letras, ii.133-4, ps. 145-46;2. Newton, I. (1692) Letter to Richard Bentley, 10 December 1692. Trinity College Cambridge, Library, ms. 189.R.4.47, ff 4A-5;
3. Maclaurin, C. (1748) An Account of Sir Isaac Newton’s Philosophical Discoveries, 3rdedn. London: Nourse, 1775.



